As duas paixões dos brasileiros são mais parecidas do que você imagina
É incrível como produtos agrícolas diferentes podem ter tanta semelhança. Café e Cacau são plantas sem muita proximidade na classificação genética, mas são tantos paralelos que podem ser traçados, que este texto não será capaz de explorá-los completamente. Mas vamos indicar os principais: os dois são estimulantes e contém cafeína; ambos possuem o “cinturão de produção” no mundo e a mesma região delimitada pelos Trópicos de Câncer e Capricórnio, a chamada Zona Intertropical ; e os dois são majoritariamente commodities — apesar do seu crescente mercado de material especial, de alta qualidade e valor agregado.
O fato de ambos serem alimentos estimulantes ajuda muito a explicar a paixão que a humanidade devota a eles. Paixão essa que leva a um movimento de contracultura à grande indústria, em busca de uma melhoria sensorial.
Apesar das origens geográficas e terroir apropriado diferem bastante, principalmente se pensarmos em grãos arábica, Café e Cacau são produzidos, em boa parte, nos mesmos países, via de regra, em desenvolvimento ou realmente pobres. Essa é uma informação relevante para ilustrar o quanto o trabalho na melhoria da qualidade pode elevar o retorno para os produtores, e o quanto esse ganho de valor pode representar no aumento da qualidade de vida nos locais de produção.
O processo de produção também interfere na qualidade do produto
E é aí que chegamos na questão das diferenças de qualidade entre o produto commodity e o especial. No caso do café, o mercado do especial já vem amadurecendo há décadas, com regras e instituições bem estabelecidas. Há treinamento amadurecido para especialistas avaliarem os grãos, e critérios relativamente bem definidos para formação de preços. No caso do cacau, este trabalho ainda vem sendo desenvolvido, e o preço de venda ainda é definido por meio de uma relação direta entre os produtores e os fabricantes artesanais de chocolate. Mas a característica de mercado de exigência de qualidade é a mesma.
A qualidade dos dois depende de uma seleção de frutos e um processamento adequado ainda na fazenda, que, sem dúvida, são a base da qual dependem todos os processos posteriores. No caso do cacau, há uma importância especial para a fermentação, sem a qual o desenvolvimento dos aromas e sabores não ocorre. É o processo mais importante de toda a cadeia de produção do chocolate.
O processo de torra interfere diretamente na qualidade do café e do cacau
Mas, após o cacau sair da fazenda, o processo mais importante, assim como ocorre com o café, é a torra, e a explicação é simples: é o processo em que mais ocorrem transformações químicas, e no qual há a possibilidade de controle e de imprimir a identidade do fabricante. É nele também também que há uma grande diferenciação entre um processo industrial de larga escala com um produto commodity e um produto especial. Tanto para o café, quanto para o cacau, a grande indústria trabalha com torras intensas, com altas temperaturas e buscando nivelar, padronizar e mascarar defeitos dos insumos. O resultado são produtos de baixa diferenciação que, lamentavelmente, são as referências para os consumidores em geral.
Já no caso do cacau fino, ou especial, a torra é feita com o intuito de desenvolver sabores que variam de acordo com origem, genética e pós-colheita de cada lote de cacau. O fator sazonal é levado em conta e, principalmente, as curvas de torra contam com temperaturas bem mais baixas. Para o cacau, é possível, ainda, usar equipamentos diferentes com bons resultados: fornos de convecção ou torradores a tambor. Há vantagens e desvantagens para cada tipo, mas apenas os torradores a tambor permitem um controle fino da temperatura em tempo real, com fácil replicabilidade e independência de peso ou equipamento: para um mesmo lote de cacau, tanto faz torrar 5 ou 25 quilos, em torradores diferentes, desde que a curva de temperatura seja a mesma (ok, há a necessidade de que os diferentes torradores mantenham fluxos de ar semelhantes, mas a influência maior é da temperatura mesmo).
Na minha empresa, eu uso um método que conta com três fases: de secagem, de desenvolvimento, e de finalização. É um método importado do café, claro que com adaptações. No entanto, não há para o cacau a questão do primeiro e segundo estouros. A amêndoa do cacau até pode apresentar um estouro, mas não é um fator relevante.
Em linhas gerais, torras mais intensas trarão notas mais “marrons”: tabaco, madeira, terroso. Torras mais suaves ressaltarão notas mais frescas: frutado, florais e herbais. É trabalho do Chocolate Maker identificar o potencial de cada amêndoa, e trabalhar a torra para ressaltar essas peculiaridades.
Por fim, apesar do chocolate exigir mais processos que o preparo do café, reforço que o que segue a torra não alcança o grau de complexidade e a possibilidade de trabalhar os sabores. A alma, a autoria do chocolate estão na torra. É aí que o artesão mais consegue colocar sua assinatura.
Essa característica é também em comum com o café, e tenho certeza que os torradores de café, lendo este texto, se sentirão em casa com o que estou colocando. No caso do chocolate artesanal, no entanto, a teoria da torrefação ainda está engatinhando. É menos consensual e difundida do que para o café, mas chegaremos lá.
Por Rogério Kamei da Mestiço Chocolates