A avaliação do café especial leva em conta o produto desde o início da produção até o produto final apresentado ao consumidor.
A classificação “Café Especial” é dada ao produto que recebe uma certificação de uma entidade que faz essa avaliação. Hoje existem duas classificações praticadas: o COB Classificação Oficial Brasileira) e a SCA (Specialty Coffee Association), sendo essa última a mais utilizada. É importante lembrar que esse é um selo dado a um produtor que se submete a uma dessas avaliações. Você pode encontrar um café de qualidade em outra modalidade de classificação (como gourmet e superior por exemplo). Também é válido lembrar que muitos produtores podem fornecer um produto de qualidade sem terem se submetido a uma avaliação, uma vez que isso exige custos e um trabalho maior.
Sendo assim você vai encontrar aqui as características do “Café Especial” mas, sobretudo, do café de qualidade. Esse texto tem contribuições dos mestres de torra Eystein Veflingstad e Gabriel Heinerici.
Avaliação do Café Especial
A SCA faz uma classificação geral do café e leva em conta o grão desde o início da produção (física) até o resultado final (sensorial).
A avaliação física julga as características de 350g do produto entregue aos julgadores. Nessa amostragem são pontuados negativamente possíveis defeitos do café cru, como por exemplo a má formação do grão, a presença de impurezas (paus e pedras), se existe casca etc. A classificação também leva em conta o café torrado, não sendo aceitos grãos imaturos nas 100g disponibilizadas.
Após a fase de avaliação física, a próxima fase é a sensorial. Vários aspectos técnicos são abordados. Dentre eles podemos destacar fragrância, sabor, doçura mínima, acidez, corpo e ausência de defeitos.
Ao final do processo ao produto uma nota é dada e aquele que tiver mais de 80 pontos recebe o certificado de “Café Especial”.
Quais as diferenças do café especial para os outros tipos de café?
O mestre de torra Eystein Veflingstad faz uma analogia interessante quanto a diferença do café especial em relação a outros tipos: Eu acho que estamos olhando o café com pouca profundidade hoje e estamos esquecendo algo muito básico: seres humanos tem sua própria ferramenta de diagnóstico embutido. Como exemplo, eu posso mencionar a Apple. Cada iPhone tem embutido uma série de sensores e aparelhos de monitoramento que fazem com que um técnico tenha praticamente tudo que precisa para diagnosticar e fazer seu aparelho voltar a funcionar sem ter que investir um dinheiro pesado em equipamentos. Isso torna o serviço mais sustentável. Nosso corpo já foi condicionado através do tempo e de impulsos externos e internos para identificar o que é nutritivo e saudável. Quando comemos uma fruta não madura, nossa boca seca por causa da adstringência fazendo que seja contra intuitivo engolir. O corpo não quer. Quando comemos uma fruta madura, a acidez natural da fruta indica para o corpo que tem coisa boa na boca e a salivação inicia, gerando o reflexo de engolir com prazer e te deixa querendo mais. Todos nós somos provadores intuitivos precisando acessar essa “memória genética” que os nossos sentidos disponibilizam. Não tem como tomar um café básico ao lado de um café muito bom sem sentir como o café mais sujo gera sensações negativas. É uma das coisas que faltam no café especial. Temos que virar a chave e lembrar que querendo ou não, aquele cliente que não tem base para avaliar o seu café, tem o próprio corpo que pode estar gerando sensações de desconforto dentro dele, sem ele saber.
O mestre de torra Gabriel Heinerici define em poucas palavras que o café especial é aquele que “apresenta ausência de defeitos e sabor agradável”
Como você viu, o café de qualidade será percebido pelo nosso paladar, por ser mais puro e ter um cuidado maior durante a produção.
Produção do café especial
O Gabriel chama atenção aqui para a relação mais próxima e mais dedicada dessa produção. Como o preparo é feito de forma mais seletiva e em quantidade menor, essa “cadeia produtiva pode promover uma boa relação com produtores, uma boa relação com as torrefações, até o consumidor final.”
Essa relação garante que o café tenha uma qualidade maior, uma vez que cada passo é acompanhado.
Para Eystein “O que aparece na xícara tem a ver com uma multiplicidade de fatores como um ambiente propício para as plantas, como um solo que beneficia a produção. Como se colhe, transporta, fermenta e seca tem grandes consequências na bebida. A questão principal é que temos um negócio que “funciona” hoje. Somente tem esse detalhe que, para mim, não funciona. Estamos sofrendo na base do café especial. O conhecimento global sobre produção de café verde está melhorando, mas eu estou esperando acontecer uma revolução nesse meio para viabilizar o futuro. Temos que olhar além, temos que estudar disciplinas diversas para chegar a entender o solo, entender onde alinhar e melhorar os processos, realmente chegar a guiar o café no caminho de excelência, retirando a sorte que faz tanto mal no mercado atual. Eu preciso de um negócio mais certo, com menos variáveis fora do controle, onde podemos fazer café sob medida, do padrão necessário para melhorar a vida da cadeia inteira. Da mesma forma que possamos, através do nosso próprio corpo, avaliar se um alimento (ou café) seja saudável e nutritivo para nós, podemos cheirar o nosso solo para avaliar a presença ou falta de microbiota saudável no solo ou avaliar etapas de fermentação ou secagem. Para fechar o círculo e entrar na minha definição da quarta onda do café, temos que parar de produzir café verde e temos que começar a produzir café para ser torrado. Quando uma fazenda tem o conhecimento necessário para trabalhar o solo, produzir café saudável e rico, fermentar e secar o café para ele se desembolar bem durante uma terra, sem gerar problemas de perda de desenvolvimento ou queima desnecessário, aí vamos achar um patamar novo, uma realidade onde o café pode parar de frustrar, e se tornar algo que tem lógica, onde possamos ver ação e reação.”
A torra do café
Após o cuidado necessário na produção, na colheita, na seleção de grãos, chegamos ao principal ponto na produção do café ao consumidor final: a torrefação.
O Gabriel destaca nesse ponto a importância dessa fase na produção do café: O processo de torra interfere na qualidade de qualquer café. O café cru é um produto que não é aromático, você tem um monte de componente químico ali que não é agradável pro paladar humano. O que a torra faz é transformar esses produtos em outros produtos que são agradáveis ao paladar humano. O processo de torra é então pegar um material rico numa composição que não é agradável e transformar ele num material rico e que agrade o paladar humano. A torra pega os componentes químicos presentes no café e cria aromas e sabores com ele.
Para Eystein, verificar se a maturação do café antes da torra também é um passo muito importante: Na hora de colher, tem um fato que pouca gente dá importância: cafés com estado de maturação diferentes, não funcionam bem juntos. Isso tem várias origens. A primeira é que café verde e café maduro, baixam o potencial deles se secar juntos. Se o café verde piora o desempenho por necessitar um processo diferente de fermentação e secagem, imagina como o verde pode estragar o café maduro.
Como está o mercado de cafés especiais?
“O mercado está passando por um momento de transição, onde a cadeia toda tem que lidar com custos maiores e uma safra pequena que provavelmente vai ser pequena ano que vem também. O consumidor vai ter que se ajustar para um ponto de preço maior, em volta de 50% de aumento em geral. Isso vai ser difícil e para mim é óbvio que chegou a hora de se profissionalizar para entregar mais ainda, ajudando a viabilizar esse preço maior. Com essa base, ainda vale investir no mercado, seja abrindo uma cafeteria ou torrefação. Falando nisso, fora de adquirir o conhecimento necessário, abrir uma torrefação é um bom negócio quando se gosta de trabalhar. Tem poucos itens para comprar. Precisa de uma balança, um selador, um moinho e um torrador. Uma cafeteria tem complexidade maior, e necessita um investimento maior para dar certo no modelo mais comum. Se o seu mercado está maduro o suficiente, poderia simplificar e falar que para servir café, eu preciso de um moinho, uma balança e um kit Hario vendendo essa especialização. Quem faz bem, tem sucesso.” destaca Eystein.
Para ele “o café tem que ser muito mais do que conhecemos hoje, e tem mais para oferecer para nós. Com as vias de informação abertas, muitas pesquisas estão sendo feitas no Brasil e pelo mundo. Estamos entrando numa época de transformação do negócio. A pandemia tem colocado algo importante na agenda: queremos experiências reais, com valor agregado em forma de qualidade, informação e uma conexão com, por exemplo, o produtor. Chegou a hora de trabalhar e formar esse novo mercado onde vamos ter que ser generalistas fortes, tendo uma base ampla e temos que especializar ou convidar especialistas para nos ajudar. Cada um tem a responsabilidade de guiar o nosso mercado, ajudar a evoluir, tornar mais sustentável e menos volátil.”
Para Eystein Veflingstad é preciso no entanto um investimento no setor como um todo. “Chegou a hora de subir o nível e abraçar o café de forma mais ampla. Café especial já vem crescendo ao longo dos anos como cultura e como profissão. O problema de entender o nosso café é complexo e temos que subdividir um pouco para ganhar a nossa visão mais ampla. Os baristas precisam de equipamentos melhores, especialmente moinhos melhores para conseguir resultados que fazem sentido no dia a dia. Equipamentos abaixo da linha de corte produzem uma moagem tão desuniforme que uma extração somente tem como mostrar bagunça e caos. Com mais controle e estudo, com equipamentos bons e limpos, a extração mostra que tem uma lógica, que pode modular a extração para onde precisa, te dando um resultado muito mais prazeroso no café servido ao consumidor. O conhecimento global sobre extração já está num nível muito avançado. Hoje, ser barista, é um jogo de correr atrás. As torrefações precisam utilizar melhor seus recursos. Não existe nada de errado em atender mercados diferentes e torrar café mais simples. Somente não se engane que vai concorrer com marcas grandes. Você nunca vai ter a mesma eficiência de uma torrefação grande. A legislação nem permite a maioria ser torrefação no papel. É complicado demais e tem custos elevados. Então somos cafeterias e padarias mostrando o café especial para a população, mas isso não faz tanto mal. Afinal, sempre são as pessoas que levam para frente. Como extração e barismo, sabemos muito bem como torrar café hoje. Simplesmente é uma questão de estudo, utilizando de forma melhor os seus recursos.
Para quem é produtor vale estudar muito sobre o produto comprado, porque é a partir da qualidade do café que você irá encontrar e fidelizar seu público. Aos coffee lovers, vale sempre conferir a procedência do café que você consome. A cadeia produtiva do grão é mais complexa do que você imagina e vários fatores influenciam no resultado final como vimos aqui. Mais importante do que um selo de qualificação é o conhecimento da origem e do tratamento do café.
Aqui no site da Atilla você tem uma aba que disponibiliza uma lista de fornecedores e cafeterias que trabalham com café de qualidade (https://www.atilla.com.br/cafes-especiais-e-cafeterias/). Você também pode conhecer mais sobre o trabalho dos profissionais que contribuíram com este texto: o perfil do Eystein Veflingstad pode ser encontrado neste link: https://www.instagram.com/e_roast/ e o Gabriel Heinerici também está na rede social no link: https://www.instagram.com/gabrielheinerici/
Texto de Clóvis Ribeiro